segunda-feira, 27 de junho de 2011

O CONTEXTO HISTÓRICO DO MOVIMENTO DOCUMENTARISTA


O movimento documentarista foi um produto do período entre guerras e para entendê-lo inteiramente é importante perceber o relacionamento dele com a constelação ideológica e as circunstâncias que caracterizam o período em sua complexidade e mutação. Os anos 30, em particular, foi um período paradoxal que gerou interpretações contraditórias dotando-o de um aspecto quase mítico. Essa caracterização também influenciou as considerações acerca do movimento que tornou-se identificado com os sucessos e insucessos dessa época lendária. (p.29)
Embora os movimentos políticos e ideologias radicais tenham se expandido nos anos 30, em geral o período foi dominado pelas crenças conservadoras e pelo controle governamental. Embora algumas partes da Grã-Bretanha tenham sofrido uma dura recessão econômica, outras partes experimentaram uma grande prosperidade econômica na época. O declínio da produção de carvão, ferro e da manufatura têxtil criou áreas significativas de desemprego, a taxa de crescimento nacional não era comparável a nenhum outro período da história do capitalismo britânico. Embora os anos trinta fossem caracterizados pelo aumento do desemprego, também foram distintos pelo crescimento dos subúrbios, a rápida expansão de Londres, o aumento do capitalismo empresarial a criação da classe média baixa trabalhadora. (p.30)
A condição da Inglaterra nos anos 30 era complexa e inigualável em circunstâncias e experiências de região para região. Essa mudança rápida de ambiente era inerentemente complicada de entender  no momento, pois a comunicação de massa era incapaz de analisar crítica e objetivamente suas condições. Os jornais eram usados como plataformas voltadas para interesses particulares dos barões da imprensa como Beaverbrook ou Northcliffe, o rádio era estreitamente regulado, e o cinema dominado por Hollywood, era incapaz para, nas palavras de Stephen Tallents, ‘projetar a Inglaterra’. Como consequência, políticos, figuras públicas, artistas e intelectuais eram frequentemente mal informados sobre as condições a sua volta. Orwell, por exemplo, não esperava que as condições fossem tão ruins quanto as que encontrou nas áreas menos favorecidas, as pesquisas sociais sobre nutrição e saúde realizadas durante os anos 30 expuseram um grau de privação que espantaram os cientistas sociais que as conduziam. Similarmente, o trabalho de escritores como J. B. Priestley e Julian Symons transmitiram uma tentativa de conectar diversas experiências, reforçando a impressão de que a topografia social e cultural era obscura no momento. (p.30.)
É importante situar esse contexto ao considerar o movimento documentarista. O movimento era influenciado pela mesma incerteza e indecisão que afetava os intelectuais da classe média na época e isso se reflete no ponto de vista político vago expresso por Grierson e outros membros do movimento. Embora um dos mitos associados ao movimento o projete para a esquerda política, na verdade Grierson era contra qualquer transformação marxista radical da sociedade, e apesar de algumas reivindicações em contrário, os outros membros do movimento também não se percebiam esquerdistas. Esses fatores, entre outros, ajudam a explicar, embora não aos olhos de alguns críticos, por que atitudes liberais centristas, e não as radicais, se enraizaram no movimento documentarista. (p.31)
O discurso ideológico do movimento documentarista durante os anos 30 pode ser posicionado à esquerda do conservadorismo dominante, à direita da opinião marxista socialista, e dentro de uma constelação de ideologias centristas associadas às reformas sociais-democratas. Essas ideologias eram diversas e heterogêneas, porém compartilhavam centros de concordância no valor das instituições sociais, na necessidade de regulação pública de mercado, e  na necessidade de rejeição ao fascismo e ao comunismo. Esse consenso social-democrata transcendeu as fronteiras partidárias políticas durante a época. Por exemplo, em 1936, o político conservador, Harold Macmillan tentou estabelecer um novo partido político sob a liderança de Herbert Morrison, político do partido trabalhista. O desejo de Macmillan, assim expresso em seu influente livro,  The Middle Way (1938), era conseguir uma fusão entre o melhor da esquerda e da direita. (p.31.)
O movimento documentarista pode ser associado com a emergente e diverso movimento da reforma social-democrata. Contudo, além dessa associação generalizada é difícil identificar no movimento com um partido político ou ideologia, por que o próprio movimento constantemente se recusava a associar-se com atividades políticas. Houve uma ocasião, no entanto, quando Grierson esteve próximo de esclarecer sua posição política, e tipicamente a fez se referindo às influências obtidas na sua juventude. Escrito em 1952 no ‘Prefácio ao Filme Documentário de Paul Rotha’ Grieson argumenta que: (p.31)

“O ‘Clydeside Cult’[1] era o mais humanista no recente movimento socialista. Essa era sua maior fraqueza, assim como Lenin havia dito, e homens como James Maxton vieram praticamente a demonstrar. Mas apesar de reconhecer isso, o fator humanista não o fez perder seu valor. Pareceu a mim, por outro lado, obter mais e mais valor, tanto quanto mais controle ideológico as forças das organizações políticas obtinham. Eu devo dizer apenas que o que eu posso ter dado ao documentarismo – com o meu trabalho como homem de cinema e tudo o mais – foi apenas o que eu aprendi dos meus mestres, Keir Hardie[2], Bob Smillie[3] e John Wheatley[4] ”. (p.32)

O ‘Clydeside Cult’ a que Grierson se refere, é mais geralmente referido como movimento ‘Red Clydeside’, formado por algumas organizações de esquerda, incluindo o Partido Independente Trabalhista, o Partido Socialista Britânico e o Partido Comunista da Grã-Bretanha. Essas organizações e indivíduos como James Maxton, a quem Grierson se refere, eram envolvidos em uma das mais importantes e emergentes políticas radicais na história moderna da Inglaterra[5]. No entanto, na citação acima, Grierson expresa sua identificação com figuras mais moderadas como Keir Hardie e Jonh Wheatley, ao invés de Maxton, ou marxistas como Jonh Mclean que bastante ligado ao centro revoltoso de Clydeside. (p.32.)
Hardie, uma figura importante na história da política trabalhista foi influenciado pelo mesmo idealismo tradicional que influenciou Grierson. O seu socialismo foi baseado em premissas morais derivadas da Bíblia e na crença de que o socialismo era uma personificação do Cristianismo na esfera industrial[6]. Similarmente, Wheatley, um irlandês católico, também queria  fazer da moralidade religiosa a base para a vida política e social. Ele fundou a Sociedade Socialista Católica em 1906 e tornou-se membro do primeiro Partido Trabalhista em 1923-4[7]. O Prefácio de 1952 deixa isso claro, no entanto o religiosismo moderado de Grierson derivado da reforma identificado com figuras como Hardie e Wheatley, não deve ser associado com posições  comunistas, socialistas como de McLean, Maxton, entre outros.(p.32)
O movimento documentarista também pode ser associado com os grupos centro-progressitas que emergiram após a derrota do Partido Liberal nas eleições de 1931. o objetivo inicial desses grupos era promover o desenvolvimento de um estado reformado progressista corporativo na Grã-Bretranha e definir os parâmetros da de uma sociedade “post laissez-faire”. Um desses grupos, o Political and Economic Planning (PEP) que reivindicava uma maior regulação da economia, tipificou a preocupação com a reforma institucional orientada que Grierson articulava, e que filmes como Housing Problems e The City and Roadworks personificavam. Em seu relatório sobre a indústria do curta-metragem na Grã-Bretanha, The Factual Film (1947), PEP explicitamente endossou posições favoráveis ao subsídio público defendidas pelo movimento documentarista, e em seu parágrafo final sobre a indústria de filmes longa-metragem, The British Film Industry (1952), eles também defendiam o tipo de envolvimento governamental que Grierson sempre desejou. (p.33)

“Se as pessoas consideram que é desejável politicamente, culturalmente e economicamente que a Grã-Bretanha produza filmes, assim deve ser feito não apenas para indefinidamente proteger a indústria, mas também para ajudá-la financeiramente tanto quando for necessário[8]”.(p.33)

            Outra importante tendência cultural que emergiu no período entre guerras cujo movimento documentarista deve ser relacionado é o crescimento da estética documentária naturalista. Essas origens podem ser traçadas durante a Primeira Guerra, quando filmes como The Battle of Somme (1916) tiveram impacto considerável. Um grande número de escritos considerando documentários sobre a guerra apareceram durante 1920, incluindo Goodbye to all That (1929) de Robert Graves e Memories of a Foxhunting Man (1928) de Siegfried Sasson[9]. Outros trabalhos baseados no formato do documentário que apareceram durante os anos 30 incluem  Love on the Dole (1933) de Walter Greenwood, English Journey (1934) de J.B. Priestley, The Road to Wigan Pier (1937) e Down and Out in Paris and London (1933) de George Orwell e de Chistopher Isherwood, Goodbye to Berlin (1939). (p.33)
            Uma das principais preocupações com a representação documentária particularmente durante os anos 30 era o desejo de trazer a classe trabalhadora para a esfera da representação. Drifters de Grierson era, de muitas formas, pioneiro nessa representação dentro do cinema britânico e embora Drifters não fosse um filme marxista, a representação do cotidiano da classe trabalhadora foi vista como uma aparição radical. Como Montagu Slater, considerou em Left Review (1935) ‘o mundo cotidiano do povo’ era um ‘ato revolucionário por si só’[10] e por causa desse documentário o naturalismo foi largamente considerado parte importante da cultura moderna. No entanto o uso excessivo do naturalismo também foi visto como problemático. As Teorias Marxistas, em particular, desenharam uma distinção entre o naturalismo que descreve a aparência e o naturalismo que enxerga mais além descrevendo a realidade abstrata. Escrito em 1932, um palestrante para o Workers’ Theatre Movement:

O naturalismo, chamada assim a forma que empenha-se em  nos mostrar um retrato no palco o mais próximo possível da vida real, cabe nas representações que mostram a superfície das coisas, mas não se presta a revelar a realidade abaixo dessa superfície. E é exatamente essa realidade logo abaixo da superfície da sociedade capitalista que o teatro deve revelar.[11] (p.34)

            A abordagem naturalista era, no entanto, insuficiente pois não podia demonstrar realidades abstratas ou oferecer escopo para comentários político-sociais. Além disso, naturalismo também é problemático pois presta pouca atenção a questões relacionadas a estética. O sucesso crítico de filmes soviéticos como Potemkin e Earth se deveu ao fato de terem alcançado com sucesso uma integração entre naturalismo, formalismo e política, e como resultado vieram a ser modelos de base para a prática do radicalismo cultural. Em um nível menos elevado, o mesmo aconteceu com os filmes do movimento documentarista, que alcançaram, para alguns, a mesma síntese entre naturalismo, formalismo e política social. ‘Talvez o equivalente mais próximo do que queremos já exista na forma do filme documentário. Podemos tropeçar na solução no esforço de criarmos o seu equivalente literário.’[12] (p.34)
O movimento documentário, no entanto, ofereceu um modelo para as práticas culturais progressistas em 1930, e Grierson encorajou isto fazendo contatos com artistas e intelectuais, incluindo Benjamin Britten, W.H. Auden, J.B. Priestley, Graham Greene, H.G. Wells e Julian Huxley, e editoras de jornais sobre o movimento, Cinema Quaterly (1932-6), Wolrd Film News (1936-8) e Documentary Newsletter (1940-7) que publicaram de autores como  Ivor Montagu, George Bernard Shaw, Somerset Maugham e Aldous Huxley. Ainda que a extensão da influência do movimento documentarista na vida cultural do período seja difícil de calcular, as evidências sugerem que o seu impacto foi considerável.(p.34)


[1]Movimento político radical parte da história do movimento dos trabalhadores na Grã-Bretanha e particularmente na Escócia.
[2] Socialista escocês e líder dos trabalhadores e o primeiro membro do Parlamento fundador do Partido Independente dos Trabalhadores.
[3] Sindicalista e político do Partido Trabalhista.
[4] Político socialista escocês proeminente da época do Clydeside.
[5] Para mais informações sobre o Movimento ‘Red Clydeside’ veja Aitken (1990), op.cit., 29-37; Middleas, R. K., The Clidesiders (London, Hutchinson, 1965); e Gallacher, William, Revolt on the Clyde (London, Lawrence & Wishart, 1936).
[6] Dickson, Tony, Scotish Capitalism (Lawrence & Wishart, 1980), p.342.
[7] Cole, G.D,H., and Postgate, Raymond, A History of the Common People 1746-1936 (London, Methuen, 1938),pp.568-70
[8] Political and Economic Planning, The British Film Industry (London, PEP, 1952). P.293.
[9] Mowat, C.L., Britain Between the Wars, 1918-1940 (London, Methuen, 1955),p.293
[10] Slater, Montagu. Left Review (May 1935), pp.364-5
[11] Citado em Laing, Stuart, ‘Presenting Things as They Are’, em Gloversmith. F. (ed.). Class, Culture and Social Change (London, Harvester Press, 1980), p.158.
[12] Jameson, Storm. Fact 4 (1937), p.18

Fonte: Traduzido de AITKEN, Ian. The Documetary Film Movement. Edinburgh University Press. 1998 

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